Procedimentos.
As obras que integram este projecto de Nuno Sousa Vieira partem de uma construção conceptual precisa e esquemática, que desvela diferentes formulações do pensamento do autor sobre as relações entre o seu processo de trabalho e o espectador. Entre as obras aparece de imediato um denominador comum: o rigor da execução, presente nos diversos meios, como a escultura, as instruções impressas e o caderno. Ao rigor da execução subjaz uma estrutura conceptual a que não é alheia a introdução da geometria, um elemento importante na fase de concepção das obras, que acciona uma relação entre o espaço do atelier e o espaço da exposição. Este relacionamento entre o visível, presente nas obras expostas, e o trabalho experimental do atelier associa ao pensamento esquemático – ou matemático – de Nuno Sousa Vieira uma poética que introduz no espectador uma noção de itinerário a percorrer a partir do encontro com as obras.
O título, Redesenhar, indica um procedimento sistemático que se destina a um sujeito indeterminado, ao qual também é dada a possibilidade de proceder a uma reconfiguração ou uma transformação. A exposição constitui-se como um estádio provisório que nos propõe um exercício sobre a nossa relação com a obra de arte e a sua contextualização. Este exercício não se destina a praticar uma sabatina interior e subjectiva, procurando recuperar referências da história da arte em presença da escultura Mesa de canto, mas a partilhar o processo de transformação que nos é dado. A peça, construída e modificada pelo artista, intersecta o espaço, criando uma cadeia de significados próxima de uma aparente tautologia. Há uma relação epidérmica entre os planos que se sobrepõem, como por exemplo o chão e a base da escultura, uma substância permeável que contém uma dupla significação. A base é o tampo da mesa, enquanto referente de um objecto reprodutível ao qual apenas temos acesso através do título e dos elementos ainda reconhecíveis na escultura. Uma associação semelhante ocorre entre uma determinada característica geométrica comum ao espaço e à mesa, dois planos horizontais onde concorrem e coincidem os dois cantos com ângulos de 90º.
A proporção não é apenas uma preocupação sobre a composição da obra no espaço, afastando-se de uma potencial fetichização do objecto e do lugar, mas um outro ramo deste sistema de pensamento, que tem como ponto de partida uma metodologia da representação de um objecto tridimensional sobre um plano bidimensional. Porém, a geometria é apenas o alicerce de um processo mais complexo que nos conduz a um embuste. As obras desenvolvem-se como um enunciado em progresso. O acabamento e a escolha dos materiais usados e trabalhados obrigam-nos a uma releitura do valor e do poder que a representação exerce enquanto lugar da memória colectiva.
As três obras expostas têm um elo indissociável: a possibilidade de o observador partilhar o processo de trabalho para além da contemplação das obras. Este dispositivo está presente nas instruções inscritas numa outra obra exposta, Projecto de canto para mesa rectangular (instruções), e indica-nos os passos necessários para realizar a operação a que o objecto original foi sujeito, recolocando-nos na primeira fase do seu processo de trabalho. As instruções expostas permitem ao espectador entrar em contacto com o procedimento usado pelo autor. Este apelo não pretende fornecer um modelo de reprodução ou banalização do método, mas estabelecer uma estreita relação entre o que é público e o que é privado. Esta relação completa-se com a obra caderno meio isométrico, que tem como base um caderno, instrumento que serve para tomar notas ou desenhar. Esta obra, concebida pelo autor e reproduzida em tipografia, é disponibilizada para o público, transitando assim para o universo individual e privado. A diferença deste caderno está na predeterminação que o artista introduz, reconfigurando também a sua função original. O miolo tem uma grelha impressa e que, contrariamente ao expectável, é uma trama isométrica que se dispõe para a escrita, o desenho ou apenas para o olhar. Caberá a cada um individualmente descobrir a necessidade de transgredir essa grelha usando o caderno, de acrescentar a esse desenho, reproduzido simetricamente em todas as páginas, o seu registo pessoal.
Neste projecto expositivo, o desenho é um processo que se distende no tempo e que não compreende exclusivamente uma prática gestual como registo visível. Redesenhar não é um mero ponto de partida, mas uma acção desconstrutiva e partilhada que transforma e reposiciona os códigos e metodologias apreendidos.
João Silvério
Outubro 2008