dois pares: ver vs. olhar – relembrar vs. ler
A obra The most accurate distance between me and some other coloca-nos a anacronia como uma categoria possível de entendimento e compreensão da estrutura de pensamento e do processo artístico da autora.
A projecção vídeo apresenta-nos um caderno de notas, identificado pela primeira imagem da projecção, e que corresponde ao instrumento que a artista utiliza para proceder a anotações várias no seu quotidiano. Este objecto portátil, consagrado à viagem e à prática íntima do registo, da inclusão de imagens, notas avulsas ou desenhos, denuncia uma actividade recolectora que tem como repositório o arquivo. É neste aspecto que o caderno Moleskine de Ana Anacleto se transforma num dispositivo próximo do simulacro. Como se a edição videográfica estabelecesse uma ponte entre o conteúdo do caderno e qualquer um de nós a quem fosse dada a possibilidade de o consultar, e de o percorrer, numa relação estreita com as referências ali coligidas.
Como se tivéssemos acesso ao seu arquivo e à forma como este é organizado.
A utilização da dupla projecção mimetiza o formato do caderno e introduz a sequência de leitura de uma página para outra, em que as imagens ou a sua ausência se vão sucedendo. É neste aspecto que a obra se torna disruptiva, obliterando a nossa expectativa sobre uma hipotética narrativa sugerida pelo índice das séries de imagens que é apresentada no início da obra. De facto, o índice é um falso índice, porque carece de ordem cronológica e porque não são indicadas as páginas do caderno fac-similado. Apenas temos acesso aos grupos de colecções que constroem este arquivo. Passo a citar a lista apresentada pela artista:
- "Artists on artists"
- "One act or two of curatorial staging"
- "Thinking metaphorically"
- "Heights and Widths"
- "Small visual essay on randomness"
- "Learning the world"
- "Angles, corners and borders"
A primeira série, “Artists on artists”, dá-nos uma pista sobre a sistematização da obra que apresenta pares de imagens ou de referências, como por exemplo “Marcel on Marcel”, estabelecendo, neste caso, uma lógica de correspondência entre um autor e o seu objecto de reflexão. Seja de um artista sobre si mesmo, ou sobre a obra de um outro artista.
É esta lógica de correspondência que vai desvelando, no decorrer de três horas de projecção, a forma como Ana Anacleto nos convida a compreender diferentes níveis de associação, estruturados a partir de afinidades que a autora reconhece, como, por exemplo, a relação encenada entre obras de arte, cuja correspondência pode ser entre o título de uma e a forma de outra, que remete para uma relação semântica. Ou ainda os limites arquitectónicos inscritos nas imagens de esquinas e cantos, os objectos de medição geométrica, os mapas que guardou e cuja representação do mapa-múndi é hoje diferente, ou os desenhos da sua autoria, que se inscrevem numa estrutura não hierarquizada de pares de objectos que pertencem a um domínio restrito, as suas colecções e arquivos pessoais.
Este processo anacrónico, ao qual só temos acesso uma única vez, durante uma projecção ininterrupta de 180 minutos, devolve-nos uma questão sobre a memória, como um correlato impreciso de imagens e referências, e um outro olhar sobre o arquivo como mapa diacrónico de acontecimentos. Como se o arquivo se abrisse em projecção panorâmica e permitisse escolher diferentes entradas estabelecendo relações subjectivas, poéticas, conceptuais ou formais. É a transformação deste dispositivo, o arquivo/caderno, que activa a proximidade com o espectador/leitor. Porque é a partir do grau de importância que cada reprodução ou forma de pensamento representa na escolha individual da artista que partilhamos na sua intimidade com o mundo. Assim estamos tão próximos como um correspondente, ou como um leitor.
João Silvério
Março 2010